Tradutor, assim como qualquer outro profissional, pode querer constituir uma empresa no seu próprio ramo de negócio. Isso é possível? Sim, claro, pois não há nenhuma vedação quanto ao exercício da atividade empresária por parte de um tradutor ou de outros profissionais autônomos. Não existe impedimento legal para que os tradutores sejam titulares de uma empresa, (ressalvando-se os casos em que a lei, expressamente, impeça tal atuação). Porém, existem algumas premissas a serem respeitadas. Vamos ver quais.
Diz o art. 966 do Código Civil brasileiro que “É empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou de serviços”. Isso quer dizer que qualquer pessoa que exerça, com habitualidade (profissionalmente), uma atividade destinada à criação de riqueza -- que visa o lucro (econômica),organizando os fatores de produção (organizada) para produzir bens ou serviços que circulem no mercado, pode ser considerado empresário. Entretanto, o parágrafo único desse mesmo artigo acrescenta uma limitação. “Não se considera empresário quem exerce profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda com o concurso de auxiliares ou colaboradores [...]”. E logo no finalzinho do parágrafo único há uma exceção à exceção. “[...] salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa”. O que tudo isso significa? Significa que tanto os tradutores quanto outros profissionais que exerçam uma atividade intelectual podem ser empresários ou constituir sociedade empresária (sempre ressalvando os casos em que a lei impeça tal atuação), quando e se a atividade intelectual por eles exercida for um dos elementos da atividade empresarial, sendo absorvida por esta última. Vou explicar esse conceito com um exemplo. Imagine um médico que tenha um consultório, onde atende seus pacientes particulares com o auxílio de uma secretária. Há uma organização mínima. Há umas despesas a serem efetuadas para que a atividade possa ser exercida (aluguel, condomínio, luz, telefone, material de escritório, acesso a internet, folha de pagamento e encargos de funcionários, impostos, taxas, etc.). Temos um local de trabalho, temos mão de obra (a secretária, eventualmente uma pessoa que efetue a limpeza do local, uma enfermeira que o auxilie em alguns procedimentos), mas a atividade que está sendo exercida é a atividade médica, uma atividade meramente intelectual, e quem está executando os serviços de consultoria médica é o próprio médico, dono do consultório, de forma pessoal. Os valores que ele recebe diretamente dos pacientes como pagamento pelas consultas são considerados rendimentos de trabalho não assalariado. Imagine agora que este médico decida constituir uma sociedade com um (mas pode ser mais do que um) colega, para juntos dividirem as despesas inerentes à atividade (aluguel, luz, telefone, etc.). Como qualquer atividade econômica, haverá claramente a presença de um mínimo de organização, provavelmente uma secretária agendando as consultas dos pacientes de ambos, organizando a limpeza semanal dos consultórios. Só para que vocês consigam visualizar melhor, digamos que um desses médicos seja um ortopedista especializado em coluna e o outro um ortopedista especializado em quadril. Ambos estarão exercendo a atividade médica, são considerados profissionais liberais e atenderão os pacientes pessoalmente, na medida em que suas próprias agendas permitirem e cada um na sua própria especialidade, ou seja, ambos estarão exercendo apenas sua atividade intelectual. O que está sendo organizado é o exercício da própria atividade intelectual dos médicos. Esta sociedade será uma sociedade simples. Agora imagine que esses médicos, após algum tempo, decidam abrir junto uma clínica de ortopedia sob forma de empresa, que além de atender pacientes com problemas na coluna ou no quadril, ofereça serviços adicionais como consultas em outras áreas de especialização da ortopedia, serviço de raios-X, plantão médico de traumatologia, consultas de emergências, ambulatório no local, etc. Para viabilizar a empreitada, terão que contratar mão de obra especializada, funcionários e outros médicos para que todos os pacientes sejam devidamente atendidos, provavelmente terão que alugar outras salas, investir em máquinas e equipamentos, precisará um plano de negócios, um estudo de viabilidade etc. É fácil enxergar como a atividade dos sócios, a essa altura, não será somente a de atender os próprios pacientes. Será necessário administrar um elevado número de fatores para que a empresa consiga se firmar no mercado e retorne os investimentos que foram necessários para realizar o negócio. Claramente, quando e se estiverem atendendo seus pacientes, os médicos estarão exercendo atividade médica, pessoal, intelectual. O mais importante, contudo, é que a atividade médica dos dois sócios se tornou um dos tantos elementos da empresa. A sociedade neste caso será empresária. No caso da tradução, para voltarmos ao nosso terreno, podemos ter empresas que contêm no objeto social, entre outros serviços, o de tradução. Vamos imaginar, por exemplo, um tradutor que trabalhe como autônomo e se especialize em tradução de TI e localização. Certo dia pode decidir constituir uma empresa que tenha como objeto odesenvolvimento e a comercialização de programas de computador e que ofereça também suporte técnico, manutenção, atualização de páginas eletrônicas, localização, criação e tradução de conteúdo, redação técnica, editoração eletrônica etc. Precisará contratar funcionários que executem todas essas atividades com as quais a empresa pretende lucrar. Ele poderá até eventualmente exercer a atividade de tradução/localização, e nem por isso deixará de ser empresário, SE esta atividade intelectual for abarcada por uma atividade maior, ou seja, se fizer parte dos elementos da empresa. Em caso de sociedade, esta será empresária. O importante é que a atividade fim do empresário individual ou da sociedade empresária não seja a tradução em si, ou outra atividade intelectual, mas a exploração da própria empresa, visando seu lucro. Acrescentando ao serviço de tradução outros serviços e/ou produtos e, principalmente, organizando os fatores de produção. É necessário captar clientes, organizar campanhas publicitárias, eventualmente organizar uma rede de vendas dos serviços oferecidos com representantes para cada área, gerenciar o pessoal que executará os diferentes serviços requeridos pelos clientes, contratar funcionários, terceirizar eventuais serviços etc. Para poder oferecer tudo isso será necessária uma estrutura empresarial. Provavelmente, até sobrará pouquíssimo tempo para exercer uma atividade intelectual. Por isso, não vá correndo até a Junta Comercial arquivar o registro do contrato social de uma sociedade empresária se a sua atividade não for a de organizar os fatores de produção. Como vimos, não basta ter uma secretária e alguns funcionários (“ainda com o concurso de auxiliares ou colaboradores”), não basta ter uma carteira de clientes e um local de trabalho. Caso estiver ausente o caráter empresarial e a sua atividade principal for traduzir, você não poderá ser considerado um empresário individual, não importando o eventual concurso de auxiliares ou colaboradores no exercício dessa atividade intelectual. Se você trabalhar sozinho, prestando seus serviços de forma individual e personalíssima, será um profissional autônomo, por mais que você se esforce em ser multitarefa e consiga ser ao mesmo tempo tradutor, redator, revisor, secretária, administrador do seu próprio tempo etc. No caso de sociedade vale o mesmo discurso. Se não existir o caráter empresarial, a sociedade será necessariamente uma sociedade simples. Se o objeto da sociedade for a mera exploração de atividade intelectual prestada pelos próprios sócios, não há como a sociedade ser considerada empresária. Repito, então. Não vá correndo até a Junta Comercial registrar sua sociedade como fosse empresária se ela não for realmente empresária. Declarar outra coisa que não seja a realidade dos fatos, poderá implicar graves problemas com o fisco. E de nada adianta depois alegar que o funcionário Tal ou o primo da cunhada do marido da amiga lhe informou que era possível. A obrigação de declarar a verdade é do próprio contribuinte. Assim como quem constitui sociedade deve declarar a verdade quando assina o contrato social, assumindo as consequências de eventual declaração não verídica. Porque por mais que os elementos formais de seu contrato social declarem que a sua sociedade é empresária, em caso de problemas com o fisco, de nada vai adiantar a forma com que sua atividade está constituída, o que importará será a essência dela, a presença ou ausência do caráter empresarial. Sempre é bom lembrar que tudo o que está aqui escrito vale hoje, mas pode não valer amanhã. https://www.facebook.com/notes/p%C3%ADlulas-de-direito-para-os-tradutores/tradutor-pode-constituir-uma-sociedade-empres%C3%A1ria/1444843392408000?stream_ref=10
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Ernesta Perri Ganzoadvogada, tradutora e intérprete de italiano e português. Archives
Fevereiro 2021
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